É
sempre um grande desafio penetrar na intenção profunda de uma pessoa. Mais
difícil é saber o que pensa um místico do século XVI como São João da Cruz.
Especialmente porque ele nunca quis dizer nada sobre sua pessoa. Não se serviu
de fatos de sua vida para explicar o fenômeno místico que percorreu em sua
existência.
Todos
os grandes especialistas do doutor místico irão afirmar que sua espiritualidade
é cristocêntrica-trinitária. Deus trindade se revela a nós por Jesus Cristo que
irá ativar a presença do Espírito Santo que nos ajudará a vivermos seus valores
dentro da realidade onde nos encontramos.
Nós
somos cristãos conforme a visão que tivermos de Cristo. Se ele for um
personagem histórico, com base em uma ideologia, afastado de nossa vida,
certamente não morreremos por ele. Se ele for um amigo, uma pessoa presente em
nossa vida de forma efetiva acontecerá uma revolução em nossos valores. Jesus
Cristo não será alguém que está longe de nossa vida. Ele sempre estará em busca
de nós para nós buscarmos a ele.
São
João da Cruz não é um teólogo. É alguém surpreendido com o grande mistério de
nossa fé. Jesus nos revela
constantemente a grande verdade que existe um romance entre a Santíssima
Trindade e a pessoa. Para efetivar este romance Jesus é o interlocutor. É o príncipe
que beija a bela adormecida fazendo que
todo o castelo de nosso ser reviva novamente.
O
carisma carmelita de se manter na Presença de Deus, perpassa a vida de São João
da Cruz. Ele terá uma experiência profundíssima sobre esta realidade que para
nós seguirá sempre sendo um mistério. Jesus é o Verbo Encarnado que irá nos
mostrar o Pai e enviará o Espírito Santificador de nossas vidas.
A
união de amor se configura e realiza na vida teologal. Esta é a estrutura
dinâmica central do pensamento sãojoanista[1]. O
grande desafio da mística cristã é a união das duas vontades. A divina deve se
unir a nossa para entendermos quem é Deus em nossa vida (V + v = U). São João
da Cruz vai ser “severo” em sua doutrina para que não sobre nada de amor
egoísta que possa atrapalhar o nosso relacionamento com o puro altruísmo de
Deus.
São
João da Cruz tem consciência de que jamais poderemos chegar à compreensão total
do mistério de Cristo. Ele nos fala na segunda redação do Cântico Espiritual
sobre a abrangência desta realidade: “Por mais mistérios e maravilhas que se
descobriram em Cristo os santos doutores e entendido as santas almas neste
estado de vida, lhes ficou tudo ainda para dizer, e ainda por entender, e assim
há muito que procurar em Cristo: porque é como uma abundante mina com muitos
seios de tesouros, que por mais que se procure, nunca se chega ao fim nem
término, antes vão em cada seio
procurando novas veias de novas riquezas aqui e ali. Que por isso disse
São Paulo (Cl 2, 3) do mesmo, dizendo: Em Cristo moram todos os tesouros e
sabedoria escondidos”.
A
doutrina sobre Jesus Cristo se apóia sobre fortes pilares bíblico-dogmáticos e
se tece com três fortes fios presentes em toda a trama textual e mental
Sãojoanista: uma viva e profunda experiência dos insondáveis mistérios de Jesus
Cristo; uma forte assimilação e meditação de alguns dos dados revelados acerca
dos mistérios da vida do Senhor; e por
fim, uma reflexão teológica e espiritual de orientação predominantemente
prática ou mistagógica[2].
Toda vida de SJ+ é recheada de um profundo diálogo com Cristo. Percebemos uma
grande semelhança com Santa Teresa neste aspecto, apesar de que todo cristão
quer se tornar discípulo e não existe discípulo sem diálogo com o mestre. Se
somos discípulos queremos aproveitar o que há de melhor no mestre. O mesmo
acontece com SJ+, ele busca um contato
íntimo com o mestre que lhe ensinará quem ele é e quem é Deus para ele.
Na
história da vida de SJ+ do Pe. Crisógono (11ª ed., p.254), temos o fato bem
conhecido do diálogo do santo com Cristo
em Segóvia contado por seu irmão Francisco: Jesus fala com o santo agradecendo
seus favores e dizendo que gostaria de favorecer-lo mais por sua profunda
amizade e trabalhos te tinha passado por ele. SJ+ responde a Jesus: “Senhor, o
que quero que me deis é trabalhos que padecer por vós e que seja eu
menosprezado e tido em pouco”. SJ+ sabia pela sua experiência de que quanto
mais servisse ao Senhor esquecendo seus egoísmos mais feliz ele seria e maior
conhecimento ele teria da verdade de Cristo presente como amigo em sua vida.
Embora o santo seja também um grande teólogo a sua preocupação é manter-se
sempre atento a missão de divulgar o amor de Deus a partir de sua bondade
infinita manifestada na pessoa de Jesus Cristo. A felicidade só será possível
pela União de amor. Afetividade de Deus mais a afetividade humana. A Graça é o
exercício de amor efetivo e atual. De forma interior com a vontade e no ato de
afeição. De forma exterior realizando obras relacionadas ao serviço do Amado. A
configuração com o que amamos faz que se coincida automaticamente nossa
identidade com o objeto amado. Nós nos transformamos naquilo que amamos.
Durante
muito tempo a interpretação da doutrina de SJ+ foi mal analisada. Se ficou no
método sem se recordar do objetivo que é a busca da felicidade na configuração
de nossa vida com a de Cristo. É necessária a negação de si mesmo para que
aconteça a união das duas vontades.
SJ+
era um apaixonado pela cruz de Cristo, pelo fato extraordinário de ele ter dado
a sua vida por amor a nós que somos criaturas. Ele desenhou uma imagem de
Cristo na Cruz que tem um significado profundo de doação da parte de Deus em
favor dos homens. Era grande devoto do nascimento de Jesus, da sua presença no
Santíssimo Sacramento e da Virgem Maria. A Encarnação, a Cruz e a Eucaristia
eram os mistérios mais meditados por ele.
Nenhum
testemunho externo chegará a exagerar a importância e a centralidade axial do
mistério de Cristo Amado e Esposo em sua vida. Nenhum será tão claro e
convincente como seus poemas. Todos nascem da ferida e da ansiedade de haver
conhecido e não ter a uma possessão e
presença de Cristo irmão, companheiro, amado e amigo[3]. Há
uma escala forte de relacionamento com a pessoa de Jesus. Um verdadeiro
discipulado no amor e no reconhecimento do que fez por nós e de sua presença
viva.
A
oração de SJ+ era essencialmente cristológica. A referência de sua vida e de
seus escritos sempre colocava no centro a sua profunda relação com Cristo. Sua
vida inteira era um diálogo de íntimo trato e amizade com ele. No momento em
que fazemos um estudo mais aprofundado de seus poemas iremos perceber uma
relação pessoal com Cristo numa totalidade existencial.
A
visão teológica de Cristo de SJ+ é a tradicional de seu tempo. Os homens se
tornam, por adoção, filhos de Deus através da encarnação do Verbo. Devido a
este fato, o homem pode transformar-se de tal modo que chegue a uma autêntica
divinização ou deificação (identificação plena com Deus). A obra da criação, da
encarnação, da salvação e da divinização Deus Pai realiza por meio da figura de
seu Filho. Tudo em Cristo deriva de sua filiação divina e de sua encarnação. Se
formos fazer uma leitura ao contrário desta realidade iremos perceber que o
homem quando se afasta do projeto de Cristo cai no autêntico sofrimento
provocado pelo seu egoísmo. Jesus nos transforma com sua amizade, nos afasta da
busca das alegrias momentâneas e nos leva à felicidade divina.
Jesus
Cristo é a peça fundamental do romance entre Deus e o homem. Deus vai à busca
da pessoa mesmo que ela tenha falhado. Tem um amor mais profundo que o homem
que não pode ver todas as dimensões de sua vida. O pecado tem menos força que a
decisão de Deus de amar e igualar
consigo o homem no Verbo.
Toda
a vida de Cristo tem por finalidade a transformação do humano em divino. O Espírito
Santo aproveita em nós o que Cristo deixou em sua vida e nos transforma para termos uma relação profunda com Deus. É um
amor esponsal, bem mais profundo do que uma simples amizade ou um amor humano.
Jesus
Cristo também é visto por SJ+ como “Sabedoria Divina” que encerra todos os
tesouros de Deus e todas suas riquezas. No momento em que a pessoa se une a
Cristo encontrará uma fonte inefável de conhecimento da realidade do amor de
Deus. Jesus é a ponte que liga nossa realidade a realidade divina. Quanto mais
forte for nossa comunicação com ele mais conhecimento e maior transformação.
Na
realidade o mistério do homem só se explica pelo mistério do Verbo encarnado.
Ele é a imagem do Deus invisível (Cl 01, 15). É também o homem perfeito, que há
devolvido a descendência de Adão à semelhança divina, deformada pelo primeiro
pecado. A função da redenção é divinizar a pessoa desfigurada pelo pecado que é
fonte de egoísmo e individualismo. A conseqüência do pecado é a ilusão de que a
pessoa é autora de sua própria felicidade. Jesus vem ensinar o caminho de
retorno ao Pai. A pessoa se torna a Morada para a Sabedoria do Filho e de sua Esposa
que é a Igreja.
A
Encarnação do Verbo aparece na doutrina cristológica de SJ+ como centro de sua
reflexão. Há possibilidade de uma divinização da pessoa graças a este mistério.
Acontece a recapitulação de todas as coisas em Cristo. Se na Criação a
imagem do Filho vestiu de beleza a todas as criaturas, pela Encarnação lhes comunicou o “ser sobrenatural”. A
Encarnação é considerada pelo santo como triunfo e glorificação de Cristo, como
primeira união e comunicação de seu resplendor e glória a toda a humanidade.
A
união e transformação da pessoa em Cristo é o conteúdo essencial do processo de
amor místico e meta do caminho espiritual. Na Encarnação esta busca se
concretiza. A culminância da união é o abraço entre a Esposa e o Esposo Cristo.
A inserção na vida trinitária se produz pela assimilação da filiação do Filho.
Somos filhos no Filho.
Em
Cristo, toque delicado, Deus Pai, mão branda, acariciou e tocou o mundo. Com
Cristo se aproximou até o íntimo de cada um dos que crêem, lhe conhecem, lhe
amam e lhe recebem. Com Cristo entrou o Homem em seu destino trinitário
(Segunda Redação da Chama 02, 16-17).
Para
a vida do homem se deu não só a criação e a encarnação, senão a vida inteira de
Jesus de Nazaré e sobre todo o mistério de sua morte redentora e sua ressurreição
santificadora. Encarnação e Redenção constituem um o binômio em que se
compreendem todos os insondáveis mistérios de Cristo. São consideradas as mais
altas obras de Deus.
A
redenção se figura ou reformula como “união” ou desposório de Deus com a
natureza humana. É a união hipostática do Verbo com a humanidade em Jesus. A humanidade foi
redimida e desposada por Cristo pelos mesmos termos que a natureza humana
foi estragada e perdida. Aqui percebemos
os temas paulinos e da patrística, o paralelo Adão-Cristo. A paixão, a morte
voluntária e a cruz representam o cume da obra salvadora de Cristo. As palavras
que brotam nas poesias e comentários de SJ+ são palavras de seguimento radical
com a cruz, palavras que derivam deste mistério.
A
morte de Cristo se tornou eficaz por si mesma, não por sofrimentos, enquanto
expressão de sua entrega obediente e amorosa a vontade do Pai. Isto torna
valiosas nossas próprias cruzes em seu seguimento: a Purificação e a entrega da
vontade, a negação. Para o santo vale a cruz enquanto entrega da pessoa de do
ser, da vontade, do amor e da vida. Ele não põe a dor e o sangue em primeiro
lugar. A ciência da cruz (gnosis) é a
sabedoria máxima que se pode alcançar.
Nada se pode atingir sem ela
Cristo
é a Palavra definitiva do Pai e Mediador universal. Pela sua Encarnação e
Redenção foi constituído mediador único, universal e definitivo entre Deus e os
homens, ainda que exerça às vezes suas funções por meio de outras mediações. O
aspecto mais contemplado pelo Santo é a mediação da revelação donde Cristo
aparece como palavra definitiva de Deus.
A
meditação sobre Cristo como Revelação, Palavra e Mestre tem que completar-se
com os títulos de Amado e Esposo, pois são os que iniciam o processo de
recepção da Palavra nele oferecida a todo o Homem.
Cristo
se torna para nós modelo e exemplo obrigatório de imitação. O caminho de
Cristo, enquanto exemplo e luz, implica fundamentalmente a negação do sensitivo
e do espiritual. Este caminho de imitação é o que pretende ensinar SJ+ em todas
as suas obras. A mística de SJ+ é essencialmente cristocêntrica e mediante
Cristo é teocêntrica, se fundamenta na imitação de Cristo.
Padre Giribone - OMIVICAPE
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